quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O outro prado




Tragam-me árvores daí de cima
e ramos e folhas
um ou outro fruto e um pássaro esporádico
e estendam-me um prado
de sombras frondosas que eu não gosto
de sol directo.

Tragam-me uma brisa quase tépida que
eu não aprecio vento pelas costas
e dêem-me uma ideia de rio
e uma sensação de ponte
que me ofereça um plano
de fuga para outro prado.

Estendam-me uma espreguiçadeira
no verde de uma casa que tive um dia
e fecho os olhos e vejo as
nuvens previsíveis e inéditas
e adormeço no silêncio preenchido
que vem cá de baixo.

                                              Paulo José Borges

para ouvires clica aqui.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

As duas estações

Da primeira vez que chegou à estação
vinha amarrotado do sono
mas espaireceu-o como quem sacode
uma fina camada de caspa
e seguiu com os amigos para o verão.

Da segunda vez anos mais tarde
já não se apeou do comboio na estação
mas desceu do autocarro todo
enrodilhado do enjoo.

A estação deixara de ser cais.
Tornara-se cemitério de passos
de lágrimas e risos
de partidas e chegadas
idas e vindas de almas permanentemente
alvoroçadas.
Nem locomotivas nem automotoras
nem carruagens nem vagões
nem carris nem travessas de madeira
que tanta falta faziam às caminhadas
junto à praia.
Sobrara apenas um edifício da estação
que vendia alimentos com a mesmíssima
e generosa fuligem de outrora.

E então pensou
se piso este solo abandonado não o profano?
se dou um passo hesitante não posso
ser trucidado por um comboio irremediavelmente
atrasado?

E então a desolação
desceu-lhe do peito às entranhas
como quando ela um dia deixou
de lhe telefonar, de lhe falar no messenger
de lhe responder aos emails
quando ao fim e ao cabo tornou obsoletas
todas as vias de comunicação.

                                                  Paulo José Borges


para ouvires a correspondência segue por aqui



domingo, 2 de setembro de 2018

É tudo (ainda assim) tão claro

as minhas rugas
que tu sulcas ainda mais
a minha pele já com esparsos
pigmentos acastanhados
o meu cabelo que cada vez menos
poderás despentear
e o branco que ele me está
desde aqui há atrasado a ficar

o abdómen arrastado
o sorriso amarelado
e a vista
cansada cansada
exaurida se quiseres
que não muda nem por nada


                        Paulo José Borges