segunda-feira, 26 de março de 2018

Poema quase esquecido

E já não me lembro de quase nada.

No café havia um
homem que engraxava sapatos
nos intervalos de arrumar cadeiras
que endireitava assim que os clientes
as deixavam tortas
e rodava o café dezenas de vezes
como num circo romano até
que se desse por satisfeito
ajustando imperceptíveis desalinhos.
A gente ria-se um pouco no meio
do receio          desconhecido.

Mais à esquerda na outra esquina
via-se um homem com farta melena
agarrar o seu crânio com ambas as mãos
como se o estivesse a (des)atarraxar no meio
do receio          desconhecido.

E já não me lembro de quase nada.

Recordo que às vezes desatava
a cantar para ti a capella
no meio de um campo mesmo
que não me lembrasse do teu nome
nem sequer da tua face.
Coisa rara ouvires estranhos a cantar.
Tu não existes.
E de cantar outra vez para quatro ou cinco
sem pré-aviso
tinha eu idade para ter juízo.

(Lembro-me de por esta altura ser o narrador da
Paixão.)

E já não me lembro de quase nada.

Nem do nome do livro que tinha enredo
num país gelado
com capa azul e branca que um dia
alguém deu a um pobrezinho
coitado.

Mas já não me lembro de quase nada.

Porque cantava? Porque me lembro dele
sempre que arrumo cadeiras? Porque
me lembrava do outro quando eu estava
doente da cabeça? (Porque me ouvias
às meias horas?) Porque quero o
livro que perdi na infância quando
sei que o vou enfiar num caixote
assim que o encontrar?

Perguntas que poderiam muito bem
tirar-me o sono
não se desse o caso de
não me lembrar de quase nada.


                                                                          Paulo José Borges


para clicar escuta aqui ;)






quarta-feira, 21 de março de 2018

Dissonante (com Nuno Miguel Morais)




E eis que tudo é impuro quando o amor é um nocturno desconcertante
E eis que é fosso escuro que eu te acorde dissonante.
As mãos como relâmpagos indiferentes
De procelas urgentes de garras mal cortadas.
São águas gélidas o nosso amor nas eternas alvoradas
São águas mal passadas nas eternas alvoradas do nosso torpor.
Que fazer quando em nós apenas delírio e sofrimento
Que fazer quando me faz espécie a tua teoria da evolução do ressentimento?
E eis que do nada uma imaculada carícia
rebenta tecidos em necrose que nutriste como guardião perfilado
Somos um só vencidos no deslumbramento do amor naufragado.


 Nuno Miguel Morais e Paulo José Borges

segunda-feira, 12 de março de 2018

Poema da flatline

um dia destes acordei
tão

em
baixo

que pensei que me tinha
morrido nos braços.

foi então que aconteceu
um rigoroso
nada.


                                       Paulo José Borges

domingo, 4 de março de 2018

Poema da porta das decisões

caminhos e atalhos
alhos e bugalhos
veredas e alamedas
asfaltos e cascalhos.

ruas, avenidas e vielas
paralelos, macadames, britas
terra batida, fim da picada.

rumos, rotas, planos
curva e contracurva
subidas e descidas
vê nos calços os danos.

alhos e bugalhos
ou sim ou sopas
viajas o no viajas?
si no viajas estás molestando.


                                         Paulo José Borges