sábado, 24 de novembro de 2018

Aviso

                                                                               

"Guerra é paz. Liberdade é escravidão. 
Ignorância é força."
          George Orwell, 1984



Por razões de higiene
Não se aceitam revoluções.





                   Paulo José Borges

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A parábola ineficaz

Eu um dia marquei
um golo de longe
mas ninguém se lembra disso.

A bola descreveu um arco
tão largo que quando
cruzou a linha de golo
já todos entravam em sua casa.



               Paulo José Borges

domingo, 7 de outubro de 2018

Eurídice de Campanhã


À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente.


Se porventura conceberes a ideia de
a ires levar à estação,
não temas Caronte -
- paga-lhe o óbolo em lágrimas de ferro.

No cais, como mortos, muitos esperam
o seu destino. Uns entram sem mais delongas,
despachando os entes queridos sem malas 
a abanar. Outros entram alijando o lastro
e saem de novo como que enredados em
pesca de cerco. Os últimos, como que
desmemoriados, fazem vagas contas de
cabeça, indagando se será ainda 
possível reaver o dinheiro da passagem.

Mas o homem do leme é implacável
e levanta o mastro encarnado para que
a barca levante ferro, (como as lágrimas,
não esqueças.)

É tempo de te armares guerreiro,
de sorrires com todas as cores,
porque, no fim de contas, não és tu 
quem vai em campanha para o estrangeiro.
(Tu ficas no cais, não sejas parvo, 
não baralhes os papéis.)
Sustenta a oxidada neblina que te toldar 
os olhos quando a saída do comboio
for de um longo e largo comprimento.

Tempos mais tarde, se fores favorecido
pela potência da lírica, atravessarás
os portões de ferro e, no final da
tua fabulosa tournée, trá-la-ás contigo.
(Leva palas.)

                                         Paulo José Borges

Para saberes a que soa uma partida clica aqui.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Ti voglio bene

Quero-te bem e
por isso quero-te bem.

Quero-te com saúde e
quero-te.

Quero-te feliz e
quero-te.

Quero-te realizada nas
mil e uma coisas com
que preenches os teus dias e
quero-te.

Quero-te completamente livre e
quero-te.

Mas sobretudo,
não sei se me faço entender,
quero-te bem.


                         Paulo José Borges

para escutar clica aqui.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O outro prado




Tragam-me árvores daí de cima
e ramos e folhas
um ou outro fruto e um pássaro esporádico
e estendam-me um prado
de sombras frondosas que eu não gosto
de sol directo.

Tragam-me uma brisa quase tépida que
eu não aprecio vento pelas costas
e dêem-me uma ideia de rio
e uma sensação de ponte
que me ofereça um plano
de fuga para outro prado.

Estendam-me uma espreguiçadeira
no verde de uma casa que tive um dia
e fecho os olhos e vejo as
nuvens previsíveis e inéditas
e adormeço no silêncio preenchido
que vem cá de baixo.

                                              Paulo José Borges

para ouvires clica aqui.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

As duas estações

Da primeira vez que chegou à estação
vinha amarrotado do sono
mas espaireceu-o como quem sacode
uma fina camada de caspa
e seguiu com os amigos para o verão.

Da segunda vez anos mais tarde
já não se apeou do comboio na estação
mas desceu do autocarro todo
enrodilhado do enjoo.

A estação deixara de ser cais.
Tornara-se cemitério de passos
de lágrimas e risos
de partidas e chegadas
idas e vindas de almas permanentemente
alvoroçadas.
Nem locomotivas nem automotoras
nem carruagens nem vagões
nem carris nem travessas de madeira
que tanta falta faziam às caminhadas
junto à praia.
Sobrara apenas um edifício da estação
que vendia alimentos com a mesmíssima
e generosa fuligem de outrora.

E então pensou
se piso este solo abandonado não o profano?
se dou um passo hesitante não posso
ser trucidado por um comboio irremediavelmente
atrasado?

E então a desolação
desceu-lhe do peito às entranhas
como quando ela um dia deixou
de lhe telefonar, de lhe falar no messenger
de lhe responder aos emails
quando ao fim e ao cabo tornou obsoletas
todas as vias de comunicação.

                                                  Paulo José Borges


para ouvires a correspondência segue por aqui



domingo, 2 de setembro de 2018

É tudo (ainda assim) tão claro

as minhas rugas
que tu sulcas ainda mais
a minha pele já com esparsos
pigmentos acastanhados
o meu cabelo que cada vez menos
poderás despentear
e o branco que ele me está
desde aqui há atrasado a ficar

o abdómen arrastado
o sorriso amarelado
e a vista
cansada cansada
exaurida se quiseres
que não muda nem por nada


                        Paulo José Borges